Tema: Do que me contaram
Por Rafael Freitas
Era um acampamento de oração para
jovens e eu estava lá. Não consigo lembrar nomes e
datas, mas a história daquele monge magrelo e engraçado, contada sob a tenda no
sábado à tarde, é difícil de esquecer. E de guardar.
Era nas ruas que ele realizava
sua "missão": atravessava a cidade para não ser reconhecido, trocava o hábito
marrom e o cordão com os votos por jeans e camiseta e ia para as ruas, na
noite, fazer companhia para marginalizados e marginalizadas, travestis e
vítimas da AIDS. Uma conversa amiga, um conselho,
uma orientação. Mas como os rostos iam ficando conhecidos, estabelecia-se uma
relação, uma proximidade. Entre esses rostos havia uma travesti na fase
terminal da doença.
Quando foi internada, esse monge
lhe visitava no hospital, oferecendo ajuda, cuidado, ombros e ouvidos. Talvez
para prová-lo, ela começou a pedir favores estranhos. Certo dia pediu uma revista
pornográfica. Ele comprou e, chegando lá, ela pediu: _ Não enxergo, lê pra
mim. Mas e o voto de castidade? - pensou o monge. Lembro da piada e do gesto feito enquanto
narrava sua contação de história adulta.
Um outro pedido: um estojo de maquiagem. Ele também comprou e, chegando lá, ela pediu: _ Não consigo me maquiar sozinha, faz isso pra mim? E ele fez. Ela pediu o espelho, se olhou e disse: _ Nunca me senti tão bonita. E assim que se despediram, pois ela se foi dias depois.
Numa outra vez, o monge estava no cinema. Seu celular tocou e ele reconheceu o número de um dos rostos com que se relacionava. Atendeu à ligação e ao pedido de ajuda: _ Socorro, me leva pra casa da minha tia, vão me pegar! Deixou o filme pela metade.
Aquele rosto indicava um caminho
afastado e, num certo ponto da estrada,
puxou um canivete e ordenou ao monge que parasse o carro e descesse. O rosto também
desceu, roubou o monge e passou o canivete no seu pescoço de um lado ao outro, como comprovava a cicatriz. Caído e sangrando, ficou vendo aquele rosto se afastar. Quando faróis brilharam na
estrada, o monge fez um esforço para se levantar, pulou na frente do carro e
pediu ajuda. Enquanto ia para o hospital, rezava: _ Só quero ir para o céu se lá
tiver cheiro de terra molhada. Talvez não tivesse, pois mesmo tendo perdido tanto sangue, ali estava: um milagre vestindo uma hábito e uma cicatriz.
As duas histórias me tocam. A primeira me
fala de preconceito e amor. A segunda, de confiança e fé. Ambas me falam de
esperança.
* Trecho da canção Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento.
* Trecho da canção Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento.
Achei esse monge muito liberal.
ResponderExcluirOu muito monge, não sei!!!
ExcluirEle era bem liberal sim, mainha!
ExcluirNão sei se era porque tava falando com jovens ou se ele era assim sempre. rs
Ou maduro ou desligado...
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